segunda-feira, 21 de março de 2011

Bisavô de Leda Flora detonou crise política no início da década de 20. Ela conta tudo!

Por Leda Flora Lemos
Rio de Janeiro, 9.10.1921. O Correio da Manhã publica fac-símile de uma carta assinada por Artur Bernardes e uma crise político-militar se instala no País. Endereçada ao senador Raul Soares, começa assim:"Estou informado do ridículo e acintoso banquete dado pelo Hermes (da Fonseca, ex-presidente), esse sargentão sem compostura, aos seus apaniguados". Ao final, dispara: "A situação não admite contemporizações, os que forem venais, que é quase a totalidade, compre-os com todos os seus bordados e galões".
                                                                 
“3-6-921
Am.º Raul Soares
Saudações afetuosas
Estou informado do ridículo e acintoso banquete dado pelo Hermes, esse sargentão sem compostura, aos seus apaniguados e de tudo que nessa orgia se passou. Espero que use com toda energia, de acordo com as minhas últimas instruções, pois essa canalha precisa de uma reprimenda para entrar na disciplina. Veja se o Epitácio mostra agora a sua apregoada energia, punindo severamente esses ousados, prendendo os que saíram da disciplina e removendo para bem longe esses Generais anarquizadores. Se o Epitácio com medo não atender, use de diplomacia que depois do meu reconhecimento ajustaremos contas.
A situação não admite contemporizações, os que forem venais que é quase a totalidade, compre-os com todos os seus bordados e galões.
Abraços do
Arthur Bernardes”

Ocioso informar sobre o abalo. A bomba explodiu na cabeça da oficialidade. O Presidente Epitácio Pessoa não disfarçou o constrangimento e os políticos exibiram apreensão. Bernardes se apressou e desmentiu a autoria, o destinatário, também, mas, no dia seguinte, nova carta. O insultado, Nilo Peçanha, "o moleque capaz de tudo", era candidato à presidência e disputaria nas urnas contra Bernardes. Um enorme escândalo. As cartas cumpriram o objetivo de indispor Bernardes com os militares.
Arthur Bernardes
                                                                     
O Clube Militar formou comissão para examinar os supostos documentos porque os primeiros peritos divergiram sobre a autoria, convocando 690 sócios para uma assembléia. Resultado: verídicas. Rui Barbosa foi chamado: falsas. A alegação mais consistente sobre a não-autoria de Bernardes estava na falta do corte da letra T, de Artur. Convocaram peritos europeus notáveis. O francês Edmond Locard atestou a veracidade; o italiano Salvatore Ottolenghi, a fraude. 
A autoria das cartas se deslocava do sim para o não. E num efeito gangorra, do não para o sim. Mesmo assim, em 10.3.1922, Bernardes foi eleito presidente numa apuração repleta de desmandos. Governou quatro anos sob estado de sítio, enfrentou o movimento dos tenentes, sobreviveu a várias crises e enfraqueceu a Velha República. De alguma maneira contribuiu para a Revolução de 30, que conduziu Getúlio Vargas ao poder com o apoio militar. Em 15 de Junho de 1922, Oldemar Lacerda e Jacinto Guimarães confessaram o crime, atribuindo a idéia ao senador Irineu Machado. Ninguém foi preso.
Ferramenta de trabalho do bisavô falsário
                                                                   
A História pára mais ou menos por aí. Não vai muito além de chamar Jacinto Guimarães, o falsário, de "modelo de crapulice". Mas eu continuo. Um talento para reproduzir caligrafias. Qualquer uma. Baiano de nascimento, confeccionou no seu "escritório" tantos diplomas que quase se transformou numa "universidade". Em sua fazenda, dinheiro entrava em carroça. Uma verdadeira caixa de Pandora. Acabou fugindo de Salvador e se instalou no Rio, dando prosseguimento às suas atividades. Certa vez, levou a neta Diva para o local de "trabalho". Mostrou uma folha branca e pincelou-a com um líquido . O papel envelheceu na hora e a menina, sete anos na época, jamais esqueceu a mágica do vovô. 
Era um homem lindo, elegante, não saía sem bengala com castão de prata. Viajava com frequência para a França, de onde também importava vestidos para a única filha, Alzira. Seus dois filhos, Jacinto e Floriano, só trabalharam depois da morte do patriarca. Adorava a política e os militares dos primeiros tempos republicanos. A mulher dele era considerada uma santa.
Quando estourou o escândalo das cartas falsas, fotos gigantes de Jacinto Guimarães sairam nos jornais, e a família, que já conhecia sustos e medo, mudou de endereço mais de uma vez. Um dia, policiais apareceram na casa da filha em busca de documentos e ela, mais rápida que o raio, escondeu papéis na roupa íntima. Mas o marido dela não deixava por menos. Nas brigas, dizia com todas as letras:" Filha de Jacinto Guimarães!" A senha da vergonha e da ofensa.
Seus nove netos trataram de esconder o que souberam já grandinhos mas, quando a linhagem de bisnetos começou, o assunto sumiu, até porque Jacinto se foi. Ninguém falava nele em família. Fotografias desapareceram. Mas como o tempo faz suas reparações, o que foi vexame, desdita e pânico virou graça muitas décadas depois. Jacinto Guimarães, afinal, entrou com a família para a História. Embora pela porta dos fundos. Lembrei-me hoje desse causo porque estamos em ano eleitoral, como em 1922, e o Brasil mudou, mas nem tanto.
Eu, menina, me apaixonei pelas assinaturas dos meus pais e, de tanto imitá-las, desenvolvi um talento para falsária. Ou melhor, para calígrafa. A bem da verdade, fui obrigada uma vez a assinar um cheque por Luciano Gomes de Lemos, o homem decisivo para me trazer ao mundo. Um problema de doença, de tudo ou nada. Mas quem puxa os seus, não degenera, diz o ditado. Afinal, a neta Diva é minha mãe, Alzira, minha avó, o marido dela, Augusto, meu avô brigão, e Jacinto Guimarães, meu bisavô sem-vergonha. Felizmente, até agora ninguém seguiu seus passos profissionais. Talvez tenha contado mais do que deveria. Mesmo assim, não consigo deixar de rir dessa árvore "genealógica." (continua)

PS. Texto original publicano no blog da autora: 
http://ledaflora.blogspot.com

2 comentários:

  1. E assim vamos aprendendo mais coisas. Abraços.

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  2. Texto delicioso. O blog da amiga ainda vira livro dos bons. Que venha logo a segunda parte dessa dupla História, a do Brasil e familiar.
    O episódio está fartamente documentado. Quem se interessar por mais detalhes é só googlar Arthur Bernardes.

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