por Cesar Valente *
Meus trezentos anos de fidelidade à mesma mulher causam um certo espanto e muita incredulidade mesmo entre amigos mais chegados. Monogamia é uma convenção social que em certos círculos foi dada como extinta, desaparecida, transformada em objeto de estudo antropológico. Digna de merecer cuidadosas escavações, onde cada grão de poeira é retirado meticulosamente, com delicados pincéis.
Leda e o cisne, versão moderna de Botero (exposição em Veneza)
Eu nunca fui um sujeito monogâmico. Tive a sorte de encontrar uma criatura que é, literalmente, todas as mulheres do mundo. E isso sempre me bastou. Duzentas ou trezentas mulheres em três décadas é número suficiente. Foi isso que tive com esta única pessoa multifacetada.
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Morto de medo e inseguro como Tiradentes a caminho do barbeiro (consta que lhe apararam a barba antes de enforcar), ofereci, em troca, algumas dúzias de personagens. Não sei, contudo, até hoje, se cumpri adequadamente com os deveres. Porque elas são tantas e tão variadas que às vezes não volto a encontrar aquela uma e daí não tenho como perguntar “gostaste?”
E de uns anos pra cá tenho sentido reacender, bem aqui, debaixo do plexo solar, exatamente onde o estômago toca, de leve, o coração e onde o diafragma, em dia de vento sul, arrisca alguns soluços, um impulso poligâmico. Não tenho tempo. Vocês sabem, as estatísticas vivem repetindo que o homem vive menos que a mulher. Por isso serei breve, direto, sucinto e até rude. O que a Teruska tem-me dito ou sugerido merece, no mínimo, um flerte de mãos dadas em algum bistrô parisiense e com certeza três dias e noites de loucura em algum resort da costa baiana. O que a GiNiki me sugere (intencionalmente ou não) não tem outro significado que a partida imediata para Niterói (onde ela mora), nem que seja apenas para ficar do outro lado da rua, suspirando à sua passagem. O que a Cé me disse em secreta correspondência exige corrida em câmera lenta numa praia do Caribe e lento mergulho em lencóis de seda chinesa (à falta de algodão egípcio). E tudo o que a Cris tem-me feito passar poderia fazer com que, alucinado, eu lhe escrevesse aquilo que outros disseram primeiro: “senhora, eu vos amo tanto que até por seu marido sinto um certo quebranto”. Só nesse parágrafo descompromissado já são quatro novas amásias, amantes, esposas, caracterizando cristalinamente a poligamia a que esse veículo tem-me obrigado. Ora, dirão os exegetas, “a coisa não se consumou”.
Acima: César e Lúcia em foto que ilustrou o casamento deles em 1977, tirada pela querida Graça Seligman. A foto com neve no cenário (Chile) é recente.
Respondo, com a límpida claridade do macho saciado: “não conheces a força da imaginação...” Uma vez que o monógamo imaginou-se nos braços, ou apenas ao alcance dos olhos, quem sabe da voz, de outras, desfez-se a aura santificada e luziu o tremeluzente brilho purpúreo e rubro do pecado. Maravilha das maravilhas, o pecado foi inventado para dar ao trivial um sabor agridoce e raro.
Minhas lindas, minhas belas, minhas amigas, não se assustem com estas reflexões. Mesmo as não citadas são devidamente pensadas, sonhadas e desejadas. O polígamo virtual é um dependente químico-físico que precisa de ajuda. Braços, bocas, mãos, seios, tudo é importante para que a gente possa recompor o equilíbrio e voltar a ser a criatura cordata e monogâmica que nascemos para ser.
Todas as mulheres do mundo não é apenas o título de um filme. É, desde sempre, meu lema. Vou começar pela minha rua, mas em dez ou doze anos chegarei a Brasília. E poderei, finalmente, saber o sabor real que tantas bocas têm. Assim, à distância, parecem ótimas. E dignas do rompimento do voto de monogamia que este asceta proferiu, em 1970, ainda eufórico com o tri, diante de uma imagem de São Nelson Rodrigues. Boa noite e sonhem comigo.
* Cesar Valente é jornalista, escritor, marido, pai e avô. Já morou e trabalhou em Brasília. Vive atualmente em Florianópolis.
O titulo original do Post é : 'Proposta poligâmica'
César, querido
ResponderExcluirMuitas mulheres devem invejar a sua Lúcia - "Duzentas ou trezentas mulheres em três décadas é número suficiente. Foi isso que tive com esta única pessoa multifacetada". Mas acredito que muitos homens, talvez até alguns que leiam essa sua "declaração de amor", também sintam o mesmo.
Muito bom ter vocês em minha vida. Saber que nem a distância, nem o tempo nos separaram.
Beijo super carinhoso em você e na Lúcia.
O que podemos dizer? César, você é um felizardo!
ResponderExcluirAbraço
Café & Conversa
Posso garantir depois de ler esse post que você tirou na sorte grande. Parabéns.
ResponderExcluirComo dizem,cada um sabe onde o calo aberto. Mas o sorriso , no passado, do casal é o mesmo do presente. Décadas se passaram entre uma foto e outra.
ResponderExcluirDizem, que depois dos 50 temos o rosto, principalmente o olhar e o sorriso, que merecemos. Um dia meu pai me disse. Teus olhos são os mesmos de você criança. E eu já passava dos 40. Nunca me esqueço dessas palavras amorosas dele.
Grande beijo pra vocês!
Só agora, no sábado de manhã é que vi esses comentários carinhosos. Muito obrigado à Clara pela publicação e a vocês pela leitura e pela generosidade.O título original dessa crônica era "Proposta de casamento poligâmico". Coisa que, de tanto que gosto das várias faces que toda mulher tem, sempre me passa pela cabeça. :-)
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