por Clara Favilla
Essa é difícil de contar. Como vocês sabem, sou velha de estrada. Em maio de 1993, meu mundo caiu pela segunda vez. Meu pai, depois de uma longa doença, enfim descansou, como se diz lá em Minas. E meu amor, de então, estava casado. Com outra. Desgraça pouca é bobagem, não é mesmo?
A primeira vez que meu mundo caiu foi quando minha mãe morreu aos 50 anos recém completados. Ela foi operada de emergência duas semanas antes do meu casamento e nunca mais se recuperou. Eu tinha tinha vinte e poucos anos, era apaixonada pelo meu marido e me iniciava no jornalismo. Chorei todos os dias, durante meses. Quando as lágrimas se cansaram, passei a só chorar por dentro.
Na segunda vez que meu mundo caiu, eu já estava com 43 anos. O primeiro casamento acabara fazia tempo. Eu havia apostado todas as minhas fichas num segundo relacionamento e estava novamente sozinha. E eu, que nunca havia tirado uma licença saúde, nem durante a gravidez, com a morte de meu pai perdi o chão. Ou melhor, as pernas, os joelhos e os pés.
A baixa imunidade resultado do forte stress literalmente me derrubou. Não conseguia andar. Um raro tipo de vírus atingiu as articulações dos meus quadris e pernas. Fiquei três semanas de cama. Pensei que não sobreviveria a mais esta definitiva separação.
Quando me levantei, vi que tinha que fazer alguma coisa que me livrasse do abismo escuro em que mergulhara, que organizasse meu caos interior, que me fortalecesse corpo e mente. Afinal, eu tinha uma filha, ainda bem menina, para criar.E foi assim que eu, induzida por amigos procurei uma terapia alternativa, depois de não me sentir acolhida por nenhum terapeuta convencional.
A primeira desses terapeutas com diplomas e consultórios falava mais que o homem da cobra. - "Ah! você é irmã da doutora Vera? Estudei com ela. Ah! você é de Ouro Fino, conheço fulano, sicrano e beltrano". Me levantei e deixei essa pobre de espírito, falando sozinha.
A segunda era feia, ranzinza e não aceitava pagamentos em cheques por causa da CPMF. Conversei duas vezes com ela e nunca mais voltei. O terceiro atendia num prédio imundo do Setor Comercial Sul. Ao perceber que ele, enquanto NÃO me escutava, fazia movimentos estranhos com os braços por baixo da mesa, fugi. O quarto me viu apenas uma vez . Era desses que não falam nada a sessão inteira e mal te cumprimentam no início dela. (Dizem que esses são Freudianos ou seja lá o que isso signifique).
Foi ai que meus amigos espiritualistas entraram no meio e me recomendaram uma terapia chamada Processo. Para fazê-la, ficava-se, naquele tempo, seis meses sem contato com pai e mãe, se vivos.Os meus estavam mortos. Então, a primeira grande dificuldade estava vencida de cara. Mas não se entrava direto nessa terapia intensiva, longa e de sessões sempre em grupos. Primeiro, havia uma espécie de iniciação, uma amaciada, por meio de sessões individuais.
Na primeira sessão, a terapeuta que me atendeu disse que eu procurasse alguém que se encarregaria de fazer um trabalho corporal comigo. Fui. Nem é preciso lhes dizer o quanto a minha carcaça estava sofrida. Meu corpo era um bloco de cimento. Eu estava completamente dura, travada e não conseguia levantar braços, pernas ou cabeça como ela ordenava.
Ao final da sessão tive que ouvir: "Minha filha, não vou ter paciência de trabalhar com você. Volte pra tua terapeuta e diga que você precisa de alguém que lhe dê a mão; que te tire lentamente desse estado corporal catatônico. Digo com toda sinceridade: "Você está morta. Precisa é de um trabalho de ressuscitação".
Desci o apartamento da tal mulher apavorada e aos prantos. Atravessei a rua para alcançar o ponto de táxi e um carro só não passou em cima de mim porque conseguiu frear. A motorista abriu a porta aos gritos me chamou de vaca, de égua, todos esses bons nomes que a pessoa diz quando está louca da vida. Sentei na calçada e chorei até o gerente da padaria me colocar dentro de um táxi.
Cheguei ao Ministério da Fazenda e só a amiga Nélia Marquez estava na Sala de Imprensa. Vendo meu estado deplorável, ligou para um médico acumputurista conhecido (médico mesmo) e pediu-lhe que me atendesse de emergência. Fui. Cheguei lá de cara inchada. Ele me perguntou o que me doía. Eu lhe disse: tudo. Aos soluços falei que alguém que se dizia profissional na área de saúde havia dito que eu já estava morta. E ele, calmamente, enquanto preparava as agulhas: "Tá nada, morto não sente dor". Parei de chorar. Havia encontrado meu Bom Samaritano.
Aguardem os próximos capítulos!
Na foto: eu e meu pai, na minha casa, a mesma onde vivo hoje, no dia que ele completou 60 anos, 01/08/1983. Dário Favilla era poeta, contador de histórias, flautista do assobio, pintor, tenor, apaixonado por óperas. Foi dedicado guardião das Contas Públicas por mais de três décadas..
Clara, conheço bem essa dor. Perdi meus pais muito jovens. Papai morreu uma semana antes do meu primeiro filho nascer e mamãe se foi quando eu estava de cinco meses de gravidez do segundo. Não fiquei tão dilacereda como você. Mas que doeu, ah, isso doeu! Também me separei do primeiro marido e vivo feliz com o segundo...vinte e cinco anos juntos. A vida, dá voltas e voltas. Passaram 36 anos e ainda tenho memória forte sobre os meus pais.
ResponderExcluirSeu relato emociona, Clara. Desejo-lhe saúde, paz e alegria.
ResponderExcluirClarinha...
ResponderExcluirQuando li, fiquei um pouco em transe. E o que ouvi, entre a dor e a poesia que emergiram no seu texto, foi uma música pressentida: Me tocam a leveza das palavras e o silêncio musical que exalam. Agradeço pela generosidade da partilha.
Clara, emocionante mesmo. Seu texto transmite informações de forma tocante e arrebatadora. Essa característica em todos seus textos que li. Beijo grande para você. Forte abraço.
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