sábado, 20 de abril de 2013

Pontes bêbadas sobre abismos


Por Clara Favilla
A coruja procura abrigo. As unhas do sol já rasgam a noite. Difícil a tarefa de se atrasar a manhã. Atravessamos de mãos dadas o Mojave. Nos reconhecemos em fantasmas dos que já se foram. Guardamos acalantos para que adormeçam em paz. Olha só! Bem ali: um catavento abandonado, um carro enferrujado, um coração despedaçado, um cacto florido e é de manhã!
Gastamos a madrugada a juntar pedrinhas coloridas do que chamamos nossas vidas. Vestígios do que fomos, de possibilidades arruinadas jaziam espalhados, opacos no limbo da falta de lembrança. Resplandeceram, então, de repente, num mosaico perfeitamente decifrável.
Estamos aqui de passagem e a leve túnica da esperança nos cobre. O cajado da amizade impede nossa queda irremediável. Pão, frutas secas, água e a sombra de misteriosos oásis nos permitem a travessia. Seguíamos a caravana e nosso coração alcançou, de repente, a estrela daquela manhã. É por manhãs assim de fugidia plenitude que respiramos.
Mais fantasmas nos visitam nessa viagem: ali nosso pai, ali amigos. Mais adiante, todos os amores que foram ou poderiam ter sido e mais os poemas esquecidos.
Virgílio nos guia. 
O inferno se afasta de nós e nem buscávamos o Paraíso, nem qualquer porta para bater ou que estivesse aberta. Nem qualquer abrigo de camas de feno ou manjedouras. Nem mesmo o calor de animais amigos. Nem vales verdejantes, nem colinas azuis distantes.
Amamos a secura do deserto. O frio e o orvalho da noite, nossos salvadores. Palavra por palavra construímos pontes bêbadas sobre abismos. O fio do medo nos sustenta, dele nasce nossa coragem.
O deserto é fértil: guarda sementes milenares e, quando a névoa úmida baixa, explode em cor, feito milagre. A amiga é decifradora dos segredos das pedras, de sinais de fumaça. O amigo sabe flutuar sobre nuvens carregadas. Eu pergunto e aprendo.
É por ali, diz a amiga e segue a direção dos cactos. É por ali, diz o amigo e segue a direção da impossível chuva. É por ali e por ali, me dizem o amigo e a amiga e sigo a direção do vento. É por ali, por ali e por ali também. É lá, não tão perto e nem tão longe. É lá muito, muito longe. Nos reencontraremos, certamente. Qualquer noite dessas veremos de novo, juntos, as unhas do sol rasgarem a manhã.


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