Por Clara Favilla
A
coruja procura abrigo. As unhas do sol já rasgam a noite. Difícil a
tarefa de se atrasar a manhã. Atravessamos de mãos dadas o Mojave.
Nos reconhecemos em fantasmas dos que já se foram. Guardamos
acalantos para que adormeçam em paz. Olha só! Bem ali: um catavento
abandonado, um carro enferrujado, um coração despedaçado, um cacto
florido e é de manhã!
Gastamos
a madrugada a juntar pedrinhas coloridas do que chamamos nossas
vidas. Vestígios do que fomos, de possibilidades arruinadas jaziam
espalhados, opacos no limbo da falta de lembrança. Resplandeceram,
então, de repente, num mosaico perfeitamente decifrável.
Estamos
aqui de passagem e a leve túnica da esperança nos cobre. O cajado
da amizade impede nossa queda irremediável. Pão, frutas secas, água
e a sombra de misteriosos oásis nos permitem a travessia. Seguíamos
a caravana e nosso coração alcançou, de repente, a estrela daquela
manhã. É por manhãs assim de fugidia plenitude que respiramos.
Mais
fantasmas nos visitam nessa viagem: ali nosso pai, ali amigos. Mais
adiante, todos os amores que foram ou poderiam ter sido e mais os
poemas esquecidos.
Virgílio
nos guia.
O
inferno se afasta de nós e nem buscávamos o Paraíso, nem qualquer
porta para bater ou que estivesse aberta. Nem qualquer abrigo de
camas de feno ou manjedouras. Nem mesmo o calor de animais amigos.
Nem vales verdejantes, nem colinas azuis distantes.
Amamos
a secura do deserto. O frio e o orvalho da noite, nossos salvadores.
Palavra por palavra construímos pontes bêbadas sobre abismos. O fio
do medo nos sustenta, dele nasce nossa coragem.
O
deserto é fértil: guarda sementes milenares e, quando a névoa
úmida baixa, explode em cor, feito milagre. A amiga é decifradora
dos segredos das pedras, de sinais de fumaça. O amigo sabe flutuar
sobre nuvens carregadas. Eu pergunto e aprendo.
É
por ali, diz a amiga e segue a direção dos cactos. É por ali, diz
o amigo e segue a direção da impossível chuva. É por ali e por
ali, me dizem o amigo e a amiga e sigo a direção do vento. É por
ali, por ali e por ali também. É lá, não tão perto e nem tão
longe. É lá muito, muito longe. Nos reencontraremos, certamente. Qualquer noite dessas veremos de novo, juntos, as unhas do sol
rasgarem a manhã.
Bela crônica. Parabéns.
ResponderExcluirFicou muito bonito isso, Clarita : )
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