quarta-feira, 15 de junho de 2011

Ovos fritos na banha de porco para um pistoleiro...O nome dele? Perfumado

por Memélia Moreira
 
O chão de terra batida vibrava sob os passos dos manifestantes. Num espaço que só por uma licença poética poderia ser chamada de “praça” o palanque armado para os discursos de figuras que naquele longínquo ano de 1991 eram a tradução de todas as esperanças de um Brasil sonhado por muitos.

Ali estavam um metalúrgico chamado simplesmente de Lula, representantes da Ordem dos Advogados da França, vários parlamentares, entre eles o deputado José Genoíno, que anos antes, naquela mesma região pegara em armas para lutar contra as opressões, artistas de televisão, bispos e dois heróicos religiosos, padre Ricardo Rezende e o dominicano francês Henry des Rozièrs, os dois jurados de morte por todos os fazendeiros do sul do Pará e norte do Tocantins. Homens que mereciam integrar a galeria de heróis da pátria.



Rio Maria (PA): Nos arredores desse paraíso correu e ainda corre muito sangue
                                         
Estávamos em Rio Maria, onde a terra exala sangue da resistência camponesa na luta pela Reforma Agrária. Três meses antes dessa manifestação, em dois de fevereiro mais um sindicalista fora  assassinado. Com tiros suficientes pra matar um pelotão, Expedito Ribeiro de Souza, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria, que anos antes servira de apoio para a guerrilha do Araguaia foi morto pelo pistoleiro João Serafim Sales, vulgo ‘Barreirito”, a soldo do fazendeiro Jerônimo Alves de Souza. E naquela tarde, em Rio Maria, três mil pessoas gritavam “chega de impunidade”.

Os discursos se sucediam quando Padre Ricardo me chamou num canto. Voz calma mesmo sabendo estar sob a mira de tantos matadors de aluguel, ele me diz que no meio da multidão, sob uma árvore que se debruçava fazendo sombra no fundo da praça havia um pistoleiro. Era conhecido pelo apelido de “Perfumado”.

Padre Ricardo temia provocações e pediu minha ajuda para neutralizer a perigosa figura.
Desci do palanque com minha agenda de anotações. Já não trabalhava mais em jornais. Era assessora do procurador geral da República e fui a Rio Maria acompanhar dois outros procuradores. Caneta em punho, assumi a função de repórter, da qual nunca me afastei. Conversei com duas ou três pessoas ao redor do pistoleiro, fingindo entrevistá-las. E me aproximei do alvo. Antes, pedi ao pessoal da TV dos Trabalhadores que fossem comigo. Expliquei-lhes a situação e eles fingiram filmar. Fiz a aproximação. E localizei dois revólveres. Um no cinto da calça e outro na meia. Os dois do lado direito.
 
"Trabalho por empreitada"

O pistoleiro cheirava à distância. Deve ter despejado um galão de perfume barato por todo o corpo. Pra quem gosta de Chanel nº 5 e Montana era um atentado ao olfato. Senti náuseas. Mas, eu assumira o compromisso de afastar “seu” Perfumado da manifestação. Estava em missão. Controlei meus medos e preconceitos. Antes de tudo, me apresentei. Ele olhou com desconfiança. E elogiei seu perfume.

Ele abriu o sorriso lisonjeado, feliz. Bêbado, sequer prestou atenção ao nome com o qual me apresentei (em situações de emergência, crio na hora nome e sobrenome. Naquele dia eu me chamava Glória Pimenta). Conversamos um pouco e lhe perguntei se podia me dar uma entrevista para o “Jornal do Povo”, nome do jornal mantido por minha família em São Luis e fechado pelo golpe militar de 1964. Mais feliz ainda, ele concordou.

Fiz as perguntas clássicas de identificação: nome, idade, profissão. Profissão? “Trabalho de empreitada moça”. Não aprofundei sobre que tipo de empreitada ele aceitava. No sul do Pará, onde naquela época os únicos artigos da lei eram o 38 e o 45, calibres mais comuns usados pelos matadores, trabalho de empreitada inclui também a pistolagem.

Volta e meia ele parava de responder e prestava atenção nos discursos. Rosnava baixinho. E indagava “a moça é amigo desse pessoal?” Não, sou jornalista. Já não sabendo mais o quê lhe perguntar, disse que estava com sede e o convidei a beber alguma coisa. Foi quando ele me testou. Gosta de cachaça. Disse que “só da boa”. E resolveu me pagar um trago. Tomei de um gole para lhe mostrar que também era uma “profissional”.

Ele se animou e passou a contar vantagens, que era bom de tiro, que não errava o alvo nem depois de uma garrafa de cinco litros de vinho ‘Chapinha”, que as mulheres da cidade eram “doidinhas pelo seu criado aqui” e, que estava com fome. Ofereci lhe pagar um sanduíche ali mesmo. “Não, a moça vai lá em casa. Vamos comer ovos fritos porque eu preciso ficar forte, o comício ainda não acabou”.

A casa ficava afastada, longe da praça onde estavam todos os meus amigos, a minha segurança. A essa altura o pânico sucedeu o medo. Entrar na casa de um homem desconhecido, bêbado e, além de tudo, pistoleiro, sem capacete colete à prova de balas era insanidade. Mas, não havia alternativas. Naquele momento ultrapassei a barreira da insensatez. Fui.
 
BENDITA REDE
 
Pelo caminho, para disfarçar o desconforto, demonstrar naturalidade, perguntei se ele preferia ovos com manteiga. Não. Manteiga não tem gosto. Bom é banha de porco. Urgh! Engoli em seco. Mas, vamos lá. Banha de porco, naquele momento era o quê menos me incomodava.

Chegamos numa pequena casa. A construção de tão desajeitada, parecia um dromedário. Mesa, dois bancos e uma rede. Sala, cozinha e quarto no mesmo espaço. Perfumado remexeu debaixo da cama e tirou um fogareiro de acampamento. A panela era uma frigideira de latão. Ele abriu a garrafa de vinho (vinho?), procurou um copo e me serviu. Era o único copo. Ele bebia na boca da garrafa. Felizmente a casa era de barro e pouco iluminada. Despejava meu copo de vinho na parede sem chamar atenção.

Quando ele pegou os ovos dentro de uma cesta sobre a mesa, não tive dúvidas. Seu Perfumado, vou ficar ofendida se não fritar esses ovos. Foi então que percebi que ele começava a ficar insconsciente com a bebida. Ufa! Ele, não discutiu, me entregou os ovos e disse que ia esperar na rede. Quase me ajoelhei para agradecer os dois santos a quem sempre recorro. Quebrei um ovo para fazer barulho e ele começou a cochilar.

Quebrei outro ovo e chamei, “Seu Perfumado, os ovos estão fritos”. Não houve resposta. “Seu Perfumado, os ovos estão fritos”. Novo silêncio. Tirei o sapato para poder correr pelo chão de terra de Rio Maria. Cheguei à histórica manifestação – a primeira acontecida no município – ainda em tempo de ouvir a estrela maior do comício dizer que o Brasil só conheceria Justiça quando se fizesse Reforma Agrária. Eram as palavras finais do então metalúrgico Lula, que mais de dez anos depois foi eleito presidente da República.
De seu Perfumado, não tive mais notícias.

O pistoleiro João Serafim Sales, matador de Expedito, foi condenado, fugiu da prisão em Marabá e, já no século XXI,  capturado pela Interpol em Boston, nos Estados Unidos, depois de ser reconhecido por migrantes brasileiros. Jerônimo Alves Amorim, o mandante do crime tornou-se o terceiro fazendeiro, em todo o País, a ser condenado pelo assassinato de um líder camponês na luta da  Reforma Agrária. O dois primeiros foram Vantuir de Paula e Adilson Laranjeira, mandantes da morte de João Canuto, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Maria a quem Expedito sucedeu e que tombou com 119 tiros em 18 dezembro de 1985.

E eu até hoje não sei que gosto tem ovos fritos em gordura de porco.

9 comentários:

  1. Adorei o artigo. Mais uma bela história que as pessoas não conhecem. Eu não sabia nada disso e gostei de ler.
    Parabéns pela coragem.

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  2. Nesse tempo que você descreve eu era menina e a luta em casa era para garantir o almoço do dia seguinte. Agora estou bem. Acabei de terminar meu mestrado e minha vida mudou, Votei no Lula.

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  3. Ricardo Icassatti Hermano15 de junho de 2011 às 18:41

    Querida Memélia,

    Ao ler o seu relato me lembrei de um desses repórteres idiotas em busca de fama que foi à Líbia, logo que começaram os conflito, fazer sabe-se lá o que. O tal repórter foi preso e passou uns dias na cadeia. Não levou um tapa sequer, mas saiu de lá dizendo que foi torturado. Ao ser questionado sobre qual tipo de tortura havia sofrido, disse que ficou sem ler jornal e sem informação por três ou quatro dias e que isso o deixou abalado. Chamou de "tortura psicológica". Depois acham ruim quando dizem que para ser jornalista não precisa de diploma ... Só faltou o infeliz dizer que foi torturado porque não tinha sabonete líquido e papel higiênico de folha dupla na prisão. E aí eu leio o seu post e fico com pena do atual jornalismo brasileiro.

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  4. Ricardo Icassatti Hermano15 de junho de 2011 às 18:44

    Ah sim, esqueci de dizer que o Vampiro Lula se banhou no sangue de todos esses que tombaram na luta e depois fez o que fez, se transformando num dos grandes ladrões do Brasil.

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  5. Realmente, o post das Memélia movimentou as energias aqui.
    Dá-lhe kassatti!
    E viva a Memélia que tal como Minas está onde sempre esteve e não botoxizada e com apartamento de dez milhos de reais, conta nos paraísos fiscais.
    Tudo que ela tem vem do chamado berço: educação e exemplo.

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  6. Que experiência incrível, adorei ler Memélia!! coragem nunca lhe faltou em andanças pelo Brasil!!
    beijos querida
    Graça

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  7. Sou amiga da Cris e ele me passou o e-mail de divulgação. Fiquei feliz. Adorei o texto, a sua coragem e fiquei sabendo coisas que nem podia imaginar. Parabéns.

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  8. Agradeço os comentários feitos. Espero contar essas histórias num livro ilustrado para meus netos. Quem sabe uma história em quadrinhos no E-Book.
    Abraços
    Memélia

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  9. Memélia,
    Ótima narrativa, coisa de repórter que vai à caça da matéria onde ela estiver, inclusive ou principalmente sertão a fora.
    Ficou-me uma dúvida, porém. Trabalhei com Adilson Laranjeira na Folha, mais tarde ele foi assessor do famigerado Paulo Maluf.
    Será um homônimo o fazendeiro assassino?
    Cumprimentos,
    Scartezini

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