domingo, 28 de abril de 2013

Crônica de uma noite de outono

Por Cris Lopes

Sou da noite, não da farra noturna, gosto do silêncio de casa. Pessoas dormindo, um ressonar aqui e ali, um bom livro e um copo d'água ao meu lado. Tem coisa melhor? É hora de pensar, organizar os pensamentos e depois dormir o sono dos justos. Tenho feito muito isso. É a hora da meditação, de encontrar o centro, o tão desejado equilíbrio.

Para outras coisas gosto do dia. Adoro sol, mas não me entendo bem com o calor, daí minha predileção pelo mês de maio, nem oito nem oitenta. Perfeito. Sinceramente, mesmo sabendo da necessidade, não gosto de chuva, mas quando ela cai depois de muitos dias desaparecida e vem aquele cheiro forte de terra molhada, eu amo. Amor fugaz.

É bom acordar em um dia fresquinho, abrir a janela, respirar profundamente e ver o mar, as montanhas e muitas gaivotas. Algumas vezes urubus se intrometem no meio delas e mesmo sendo um bicho horrível, voando é maravilhoso como se fosse garça. A vida é assim, plena de contrastes.

Penso em mim e dou um rápido passeio no passado. Percorro meu itinerário de vida, alterado várias vezes por mudanças intempestivas. Cai, levantei, cai de novo, encontrei o amor pleno da maternidade e que maravilha! Fui avó de um lindo menino loirinho com cara de anjo e que hoje é um adolescente saudável. Dádiva, só pode ser. Amei, fui amada, encontrei o amor que eu queria e digo com sinceridade, sou feliz. Não tenho mais desejos supérfluos, encontrei, no meio de dores e alegrias o que acho ser meu equilíbrio. Enlouqueci? Talvez, mas ganhei sabedoria, muito menos do que gostaria.

Como todos, também adoeci, curei-me, adoeci de novo e vou levando a vida sorrindo na certeza de que nada nos acontece por acaso. Fatalista? Quem sabe. Mulher de fé, sou. Fé em tudo: Deus, pessoas, natureza, mundo...sou daquelas que acredita que o meu país melhorou e nem gosto de me lembrar da palavra ditadura; é como se fosse um cancro cravado na alma, daqueles que médicos e remédios não curam.

Quando jovem era uma espoleta. Quanto mais coisas melhor. Foi divertido, mas passou. Amadureci, descobri a paz de estar em casa, a alegria d presença dos filhos, do neto, dos amigos, tudo assim calmo, um pouco de cada vez, pois sou inimiga do estresse que conheci tão bem. Depressão? Nunca mais ela me pega e só me pegou, juntamente com uma síndrome do pânico, porque eu estava desprevenida e pensando que o trabalho era a coisa mais importante do mundo. Passei um tempão sem parar para ver os pássaros, aprender a tirar uma abelha da casa sem machucá-la e muito menos matar, coisa simples que não ia e resolvia logo com uma chinelada sem pensar na importância do animalzinho.
Estou longe da perfeição, e o pavor de baratas adquirido na casa de uma de minhas avós? esse irá comigo até a eternidade, mas como tenho sorte, nunca vi uma em minha casa e nem escutei o som bem baixinho (tsc, tsc) que elas fazem quando correm ou se preparam par o voo.

Pois então, mais uma das minhas estórias em uma noite de outono. Fica o registro.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

No meio do caminho desta vida, me vi perdido numa selva escura

Nesta sexta-feira, 26, realmente me surpreendi.
Logo depois da abertura  , simplesmente genial, da série Mad Men , no primeiro episódio da sexta temporada, me aparece Don Draper em férias com a nova namorada, numa praia do Havaí, com Divina Comédia, de  Dante Alighieri , em mãos.

É claro, lia o  Canto I, um dos mais conhecidos.  Versos que definem a temporada que traz Don, na encruzilhada da meia idade, repensando o já vivido e principalmente seus erros.
Há uma infinidade de traduções para a Divina Comédia, principalmente deste Canto I, mas optei por transcrever aqui a de Augusto Campos: 


O Paraíso , Ilustração de Sandro Botticelli para a Divina Comédia 

"No meio do caminho desta vida
me vi perdido numa selva escura,
solitário, sem sol e sem saída
Ah, como armar no ar uma figura
dessa selva selvagem, dura, forte,
que, só de eu a pensar, me desfigura?
É quase tão amargo como a morte;
mas para expor o bem que eu encontrei,
outros dados darei da minha sorte.
Não me recordo ao certo como entrei,
tomado de uma sonolência estranha,
quando a vera vereda abandonei.
Sei que cheguei ao pé de uma montanha,
lá onde aquele vale se extinguia,
que me deixara em solidão tamanha,
e vi que o ombro do monte aparecia
vestido já dos raios do planeta
que a toda gente pela estrada guia
Então a angústia se calou, secreta,
lá no lago do peito onde imergira
a noite que tomou minha alma inquieta;
e como o náufrago, depois que aspira
o ar, abraçado à areia, redivivo,
vira-se ao mar e longamente mira,
o meu ânimo, ainda fugitivo,
voltou a contemplar aquele espaço
que nunca ultrapassou um homem vivo."

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Felicidade Clandestina


Clarice Lispector 

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era da paisagem do Recife mesmo, onde morávamos , com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".


Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía «As reinações de Narizinho», de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima das minhas posses. 

Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até ao dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas do Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder; que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama "dia seguinte" com ela ia se repetir no meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o facto de não estar entendendo.Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era essa descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar a casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardava o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar...Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

Texto postado no Facebook por Ana Sofia Melo

terça-feira, 23 de abril de 2013

Desilusão de janelas trancadas

Por Clara Favilla

Voo Santiago/São Paulo. Novembro de 1997. Manhã ensolarada. De novo sobre o mar dos Andes. O piloto avisa que o mais alto de seus picos, o Aconcágua, está ali, bem a nossa esquerda. O avião parece voar tão baixo e, como criança, penso poder tocá-lo só com um esticar de braços. Parece que nem se foi, faz tempo, o tempo de se querer uma escada bem alta para subir aos céus.

Foto do autor 

Lamento que o filme na minha máquina estivesse no fim e, prontamente, um passageiro gaúcho me presenteia um. O que lemos sobre os Andes não nos prepara para o assombro de sobrevoá-lo assim tão perto, o assombro de ver infinitos picos em série desafiando nuvens translúcidas.


Imediatamente, o que vemos nos permite incorporar o apenas sabido abstratamente: a Cordilheira é um longuíssimo sistema contínuo de montanhas ao longo da costa ocidental da América do Sul. É como se víssemos por um espelho imagens e cores se multiplicando infinitamente. Queremos atravessar o espelho e agarrar com as próprias mãos esse mistério grandioso. Não há medo. Só a desilusão de janelas trancadas.
Os Andes tem 8 mil km de extensão, a mesma do litoral brasileiro. É a maior cadeia de montanhas do mundo em comprimento, e em seus trechos mais largos chegam a 160 km do extremo leste ao oeste. Sua altitude média é de 4 mil metros e seu ponto culminante é o pico do Aconcágua com 6962 metros, na Argentina.
Os Andes se estendem desde a Venezuela até à Patagônia. Fazem parte da paisagem do Chile, Argentina, Peru, Bolívia, Equador, Colômbia e Venezuela. Na Colômbia e Venezuela ramificam-se e prolongam-se até quase tocar o Mar do Caribe. Em sua parte meridional servem de longa fronteira natural entre Chile e Argentina.
Na zona central, os Andes se alargam dando lugar a um planalto elevado, o Altiplano, partilhado pelo Peru, Bolívia e Chile. A cordilheira volta a estreitar-se no norte do Peru e se alarga novamente na Colômbia para estreitar-se e dividir-se ao entrar na Venezuela. Os Andes não separam, integram.

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Bicho arisco


por Clara Favilla 
Coisa que não se deve procurar é o Amor. Quando mais se procura mais ele foge. Bicho arisco. Amor é cavalo selvagem sem sela, a galope. Os corajosos, como nos filmes de bandidos e mocinhos de antigamente, pulam sobre suas ancas e agarram-se como podem às suas crinas. E é preciso agarrá-las com força emprestada dos deuses para não acabar derrubado e afogado em mares de cascalho, lama,  poeira, ou tragado por abissais precipícios.
Está sempre de passagem e com pressa. O amor que se procura e se encontra é enganoso. Nunca é o que deve ser, como deve ser. Nunca tem o gosto, a temperatura, a textura que dele se espera. E se aparece como sonhamos é miragem. Pode-se acreditar na miragem. Há quem goste de se enganar, de se trair. 

É o amor que nos acha. É preciso reconhece-lo na forma que chega, no instante que chega. Caso contrário, perdição pura. É um raio. Se os olhos estão fechados, só se sabe do trovão. 
Amor não é da família dos elfos. Se tem a boca carnuda, os olhos são mínimos. Se os olhos faíscam, o nariz é adunco. Se é alto, desengonçado. Se faz graça é porque é triste. E se é triste, tem um menino que brinca dentro dele. Nunca está à disposição. Nunca é pra sempre. Vai embora, mesmo quando não quer. Atrevido, caprichoso, domina quando olha de lado, não quando olha nos olhos. Não aceita açoites. Nem grilhões. Também de nada adianta paparicos. O Amor pode até comer na tua mão. Mas não agradece e a tua cama nunca é a definitiva.
Somos fascinados por sorrisos, tons de vozes antigas. Por aconchegos que fantasiamos. Mas o Amor não é feito de doces suspiros. É feito de sangue, suor e lágrimas. Amor é terra de ninguém. É deserto escaldante, é geleira. Nunca Jardim do Éden.

domingo, 21 de abril de 2013

Silêncio que sustenta o mundo


Por Clara Favilla 
No campo de concentração de minha infância tem um jardim, um pássaro que me visita e um sapo que me conta histórias. 
Durmo em travesseiros de ervas perfumadas e retratos dos mortos da família velam meu sono. 
Uma mulher senta-se aos pés de minha cama e me protege, à noite, dos torturadores, num embalo de que é a vida é assim. É assim. Assim mesmo.
A lua entra pela janela entreaberta e anjos me visitam. 
O vento sussurra histórias de Mil e Uma Noites, Tesouro da Juventude, verbetes da Enciclopédia Britânica. 
Histórias celestes, humanas, minerais, histórias animais e vegetais que alimentam e fazem crescer meu amor sem medidas por mapas, rios, mares, florestas, cidades, montanhas desenhadas em papel; pelos astros, paisagens longínquas.
Meu amor pelo silêncio que sustenta o mundo e que o coração reconhece e chama de eterno. 

sábado, 20 de abril de 2013

Pontes bêbadas sobre abismos


Por Clara Favilla
A coruja procura abrigo. As unhas do sol já rasgam a noite. Difícil a tarefa de se atrasar a manhã. Atravessamos de mãos dadas o Mojave. Nos reconhecemos em fantasmas dos que já se foram. Guardamos acalantos para que adormeçam em paz. Olha só! Bem ali: um catavento abandonado, um carro enferrujado, um coração despedaçado, um cacto florido e é de manhã!
Gastamos a madrugada a juntar pedrinhas coloridas do que chamamos nossas vidas. Vestígios do que fomos, de possibilidades arruinadas jaziam espalhados, opacos no limbo da falta de lembrança. Resplandeceram, então, de repente, num mosaico perfeitamente decifrável.
Estamos aqui de passagem e a leve túnica da esperança nos cobre. O cajado da amizade impede nossa queda irremediável. Pão, frutas secas, água e a sombra de misteriosos oásis nos permitem a travessia. Seguíamos a caravana e nosso coração alcançou, de repente, a estrela daquela manhã. É por manhãs assim de fugidia plenitude que respiramos.
Mais fantasmas nos visitam nessa viagem: ali nosso pai, ali amigos. Mais adiante, todos os amores que foram ou poderiam ter sido e mais os poemas esquecidos.
Virgílio nos guia. 
O inferno se afasta de nós e nem buscávamos o Paraíso, nem qualquer porta para bater ou que estivesse aberta. Nem qualquer abrigo de camas de feno ou manjedouras. Nem mesmo o calor de animais amigos. Nem vales verdejantes, nem colinas azuis distantes.
Amamos a secura do deserto. O frio e o orvalho da noite, nossos salvadores. Palavra por palavra construímos pontes bêbadas sobre abismos. O fio do medo nos sustenta, dele nasce nossa coragem.
O deserto é fértil: guarda sementes milenares e, quando a névoa úmida baixa, explode em cor, feito milagre. A amiga é decifradora dos segredos das pedras, de sinais de fumaça. O amigo sabe flutuar sobre nuvens carregadas. Eu pergunto e aprendo.
É por ali, diz a amiga e segue a direção dos cactos. É por ali, diz o amigo e segue a direção da impossível chuva. É por ali e por ali, me dizem o amigo e a amiga e sigo a direção do vento. É por ali, por ali e por ali também. É lá, não tão perto e nem tão longe. É lá muito, muito longe. Nos reencontraremos, certamente. Qualquer noite dessas veremos de novo, juntos, as unhas do sol rasgarem a manhã.


terça-feira, 16 de abril de 2013

Jornais mudam para ganhar leitores. O que ganham sendo não jornais?

Renato Janine Ribeiro é  professor-titular da cadeira de Ética e Filosofia Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Escreve no Valor Econômico. 
Faz tempo que os jornais procuram conquistar um público que não gosta de jornais. Quando o Estadão diz, ontem, que os leitores querem "mais conveniência e eficiência de leitura, um jornal mais compacto", está dizendo, com muita tristeza no coração mas evitando mostrá-la, que os leitores querem um jornal menos jornal.

 Quando a "Folha" faz, cada poucos anos, uma mudança gráfica que torna o jornal de mais fácil leitura, reduzindo o tamanho dos parágrafos e aumento o tamanho das fontes, chegando a permitir que na Ilustríssima o espaço branco predomine sobre o escrito, está procurando ganhar os leitores que não gostam de jornal. E ainda diz que a mudança é para melhor, é gloriosa etc. 


Sempre senti que seria como eu, professor, me gabar de dar aulas mais curtas, com menos conteúdo, falando mais devagar, usando menos palavras.A pergunta é parecida para jornais e professores: dá para manter sua share na imprensa, se vc não acredita que seu produto é bom, bom demais?


Dá para apostar na mídia impressa quando ela mesma se disfarça em não-impressa, reduz as palavras, acelera as coisas, querendo conquistar um leitorado que não é o dela? Não percebem que dizer - implicitamente que seja - que o produto não é bom, que precisa ser disfarçado, é a pior estratégia para conquistar quem já nao aprecia - ou nem quer conhecer - o produto?

Isto é muito parecido com algo que acontece na educação.
Para conquistar alunos dispersos, quantos não buscam recursos que não são os da educação? Se se vai falar em personagens admiráveis, recorre-se ao ídolo do momento, até mesmo um Neimar. Fica tão claro que o professor não tem coragem de dar, como modelo, um escritor, um artista, um cientista. Fica tão claro que se tenta entrar na festa pelos cantos, envergonhado.
Muito em tese, penso que nem os jornais ganham se fingindo de não-jornais, nem ganha a educação quando o educador disfarça o que ela é.


Reprodução de comentário de Janine do FaceBook.
Para ler as colunas de Janine no Valor Econômico clique AQUI

sábado, 13 de abril de 2013

Uma aula sobre burca

O filósofo e poeta Antonio Cícero deu  interessante, esclarecedora e longa  entrevista exclusiva a Aetano Lima. O Café & Veneno pede licença ao autor  para  publicar alguns trechos. O intuito é realça-los e facilitar a leitura.  Leia a íntegra da intrevista com um clique AQUI.

Mulheres ditas informadas que optam pelo uso da burca deveriam renunciar a qualquer vida – ou pronunciamento – público.

Antonio Cícero
A burca faz parte de um sistema cultural. Assim, entre os talibãs, que estão entre seus principais defensores, por exemplo, as mulheres não são apenas obrigadas a usar a burca, mas são também destituídas de autorização para trabalhar fora, proibidas de se escolarizarem depois de oito anos de idade e, até então, obrigadas a não estudar senão o Alcorão; caso violem as leis talibãs, estão sujeitas a serem publicamente açoitadas.
Creio haver basicamente cinco tipos de mulheres que usam a burca.

O primeiro é o das mulheres que são simplesmente obrigadas a fazê-lo pelas suas famílias.
O segundo é o das mulheres que acham natural serem submetidas a semelhante sistema cultural. Foram convencidas disso exatamente por ignorância: por nada terem aprendido, fora técnicas domésticas e preconceitos de origem religiosa e cultural. Não conhecendo alternativas, é por ausência de liberdade, não por liberdade, que elas querem usar a burca.
O terceiro, que em grande parte coincide com o segundo, é o das mulheres que optam pela escravidão ou pela eterna minoridade, de modo a escapar das responsabilidades que advêm da liberdade.
O quarto é o das mulheres que, jamais tendo sido obrigadas a usar a burca, decidem fazê-lo para afirmar sua identidade cultural e religiosa islâmica. Isso ocorre principalmente entre mulheres muçulmanas que vivem no Ocidente, inclusive entre mulheres que, não tendo origem muçulmana, converteram-se ao islã. A maior parte das fundamentalistas é composta de tais mulheres.
O quinto é o das mulheres que usam a burca idiossincraticamente, sem terem nenhum compromisso cultural com o que ela representa, por mero capricho ou moda.
Veja bem: penso ser evidente que a imensa maioria das mulheres que usam a burca pertence ao primeiro, ao segundo e ao terceiro grupo. São as mulheres que por diferentes razões são, voluntária ou involuntariamente, escravizadas pelos seus pais, irmãos e/ou maridos.
A função da proibição da burca é fazer com que, por motivos práticos, (1) os maridos dessas mulheres deixem de impor seu uso a elas; (2) essas mulheres mesmas deixem de considerar natural o uso da burca, e, consequentemente, sejam capazes de abandoná-la, (3) fazer com que cada uma delas assuma uma personalidade pública, inclusive as responsabilidades e liberdades que fazem parte de tal personalidade.
É verdade que a proibição significa também impedir o exercício da liberdade de usar a burca pelas mulheres do quarto e do quinto grupo. Entretanto, não só elas são muito poucas, em comparação com as dos primeiros grupos, como, no que toca às do quarto grupo, há algo de espúrio em sua adoção da burca. Por que? Porque, segundo a formulação usada por você, trata-se de mulheres que decidiram fazê-lo “de modo livre e informado”. Nesse caso, elas devem saber que a burca faz parte do sistema cultural que descrevi acima: e que, segundo esse sistema, as mulheres não devem ser livres nem informadas. Se quisessem realmente afirmar a identidade cultural e religiosa islâmica, deveriam também, abandonando seus empregos, já que são mulheres, encerrarem-se no lar, deveriam se restringir a ler o Alcorão, deveriam apoiar a adoção da “lei islâmica” ou charia (que despreza os direitos humanos) e deveriam renunciar a qualquer vida – ou pronunciamento – público.
Quanto ao quinto grupo, que usa a burca por mero capricho ou moda, penso que a perda de liberdade que sofrem ao ter que abdicar do seu uso não é nem de longe comparável com a escravidão sofrida pelas mulheres que são obrigadas a usar a burca.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Sobre indignações cínicas e serôdias

 Por Aetano Lima


1. Um dia antes do artigo do Vladimir Safatle (Folha de 02/04/2012), eu escrevi no Twitter: Marco Feliciano é um marco - um marco do avanço do fideísmo.

2. Por que o fideísmo avança? Onde ele avança? A resposta a estas questões aponta para uma omissão gravíssima.

3. Temos quase VINTE ANOS de social-democracia no poder e nenhuma mudança significativa em termos educacionais. Como o fideísmo alimenta-se também de ignorância, uma parte dos frutos que estamos colhendo agora é decorrência dessa grave negligência.

4. Não bastasse isso, PT e PSDB passaram, cada um a seu modo, a dar cada vez mais espaço à bancada fideísta (católica ou evangélica), já que eram seus devedores. Com efeito, na busca desesperada por votos, aqueles partidos, durante as últimas eleições, deram-se à lavagem de pés de padres e pastores e, como incoerência nunca foi um problema para eles, adotaram a retórica fideísta, em detrimento de suas bandeiras históricas.

5. Agora os tentáculos do fideísmo começam a incomodar, e os intelectuais - que aqui na nossa terrinha só preveem o passado - despertaram para esse risco, mas, estranhamente, com uma certa resignação.

6. Pois bem, na próxima eleição, o jogo repetir-se-á, a bancada da fé vai aumentar e a ameaça de retrocesso idem. Preparem seus ouvidos para as indignações cínicas e serôdias.

Aetano @Aetano " Um anarquista bem-comportado." É graduado em Odontologia e Direito.