por Memélia Moreira
Faz quase 20 anos, mas todos os detalhes continuam tão vivos que posso até contar uma história daquelas cronometradas, minuto por minuto. Talvez seja uma das mais inusitadas das muitas inusitadas experiências que já tive. E não tenho dúvidas ao dizer isso, claro. Afinal de contas, foi a primeira e única vez que me aconteceu uma aventura palaciana.
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Parafraseando Neruda: o homem é o seu topete |
Calma, mentes libidinosas. Não, não foi uma aventura amorosa. E se fosse, eu jamais estaria aqui, frente a um computador, a contar segredos. Jamais contaria a quem quer que fosse. Conversas de alcova merecem nascer e perecer entre lençóis. Seja com reis ou mendigos. É parte do código de elegância dos amores fugidios, dos amantes perenes, dos companheiros de vida. Mas, vamos ao que interessa.
A FLORESTA
A aventura começou com o massacre de garimpeiros contra os índios Yanomami na região conhecida por Haximu. Na época, todo o território Yanomami estava conflagrado por uma massiva invasão de 20 mil homens, escavando o chão, destruindo os pilares que sustentam a Terra.
Lá, onde Brasil e Venezuela compartilham florestas de beleza quase agressiva, montanhas erguidas qual castelos medievais e paredões que se parecem colunas de soldados prontos a defender as matas, se travava a batalha do último grande povo primitivo do planeta, os Yanomami, contra milhares de famintos de todo o Brasil em busca de uma pepita que lhes salvasse a vida.
Lá se chama Roraima, ou Roraimã, que na língua do povo de Makunaimã, os Makuxi, significa "terra dos ventos". Foi o que me ensinaram da terra onde nasci. O número de mortos, embora Aritmética seja uma ciência exata, é variável. Uns falam em 90, outros em 13, alguns dizem que chegou a 15. Mas o Supremo Tribunal federal reconheceu o massacre como ato genocida. E foi.
Nunca, ou talvez só daqui a muitos anos, as ossadas descarnadas, com aquele branco ofuscante dos esqueletos determinem com exatidão quando, quantos e como morreram as vítimas do massacre de Haximu. Porque até mesmo a data precisa do massacre flutua a cada texto. A única informação certa é a de, que, sim, houve um massacre em Haximu e morreram muitos índios. Os demais fugiram apavorados.
A notícia chegou ao Brasil (é isso sim, de Roraima para o Brasil, acredito, a notícia pode durar mais de dez dias, mesmo na era dos MSN, Google Earth, smartphones e outros quetais) nos primeiros dias de julho. E foi aquele estupor de sempre. O estupor de uma sociedade que, ao se olhar no espelho entra em choque. Ela enxerga, sem máscaras, toda a monstruosidade de que é capaz de perpetrar em nome de uma discriminação que nega, mas está presente a cada movimento do corpo.
O choque foi tão forte que não hesitamos avançar, dedo em riste, em direção aos garimpeiros. E, com ar de desprezo, apontá-los como únicos responsáveis pela ocupação fundiária desordenada de uma Amazônia sem lei, mas com sobas e reis atrás de cada árvore, ou restos de árvore.
O massacre tomou vulto e se espalhou pela comunidade internacional, essa entidade mítica que cria verdadeiros marimbondos de fogo no estômago de cada autoridade. É quando o sentimento do colonizado se aflora em carne viva. “O que é que o patrão vai pensar de mim” fantasiam presidentes, senadores, ministros, se não tiverem uma resposta aos colonizadores. Sim, todos eles, sem exceção, comportam-se como meninos do grupo escolar em dia de visita do diretor da escola. Do suor de seus rostos as gotas pingam formando interrogações nos ladrilhos, assoalhos, chão batido. O que será que eles (os estrangeiros, os colonizadores, claro) vão pensar de nós, brasileiros? Essa mentalidade só muda de quatro em quatro anos, quando entramos num campo de futebol, com o coração aos saltos e a certeza da resposta nos pés. Mas chega de poesia, blablabla, nariz de cera.
O massacre caiu bem na sala do procurador geral da República, Aristides Junqueira Alvarenga, a quem eu assessorava, caíu do lustre do Salão Oval do Palácio do Planalto, onde o presidente se reunia com seus pares, caíu feito bola de fogo no gabinete do ministro da Justiça, um pacato advogado, apreciador de um bom malte, derrubou paredes da Funai e e foi fazendo seus estragos em direçao a todas as fronteiras.
Daí a pouco, o mundo inteiro congestionou as linhas telefonicas do Brasil. Houve um massacre! "Eine Massaker"… gritavam os alemães ao telefone, quase felizes por não carregarem, sózinhos, o carimbo de genocidas. "Les chercheurs d´or ont tué des dizaines d´indiens", murmuravam franceses como se cada vírgula fosse um segredo da Linha Maginot.
A mesma imprensa que, desde 1989, acompanhando a evolução dos acontecimentos na área e ouvindo seus colegas brasileiros, feito pitonisa, anunciara a fermentação do caldo que borbulhava numa panela onde foram jogados todos os problemas da contínua desordem agrária e da pobreza brasileira e que, deliravam as autoridades, deveriam se resolver dentro de um buraco, nas profundezas da terra, de preferência, longe de Brasília, do sul-sudeste maravilha. E, se fosse um buraco com ouro, diamante, tungstênio, urânio, era ainda melhor.
A COBRANÇA INTERNACIONAL
Em meio à loucura, à algaravia de línguas tão exóticas quanto o croata e o polonês, coreano (ou será que todos falavam inglês e eu só ouvia com os olhos?), organizava a viagem do chefe, euqnato coleguinhas sôfregos por um detalhe a mais, mesmo que fosse uma gota de sangue, circulavam pela sala. O procurador geral da República e o ministro da Justiça embarcararam para Roraima. Dar uma resposta internacional e pedir trégua, era o objetivo maior. Mais uma trégua que permitisse a sobrevivência do povo Yanomami.
Voltaram no mesmo dia. No outro, o presidente da República, no uso de suas inequívocas atribuições, convocou um Conselho. A República se reuniria. Precisava dizer para esses “malditos estrangeiros” que vivem xeretando nossas insanidades que tudo estava sob controle, tudo continuava nas mãos firmes do comadante em chefe do país e das Forças Armadas, do clero, dos doleiros, dos líderes políticos, do narcotráfico, da soceidade civil organizada, desorganizada e do povo em geral.
Acompanhei meu chefe e me sentei numa poltrona de uma saleta vazia, sem secretária, mas com um telefone. E lá ficaria o tempo necessário, esperando ser acionada pelo procurador geral que já fora para a grande sala de reuniões do Palácio do Planalto. Puxei da bolsa o companheiro de todas as horas. Na época era "Nostromo", de Joseph Conrad. E me embrenhei nas palavras.
UM PRESIDENTE
Nesse momento, na sala vazia, entre um homem apressado, me pega pelo braço e diz: "estamos atrasados". Eu, que nem tive tempo de explodir minha surpresa, me deixei levar. E não poderia ter sido difrente. A mão que me arrastava com delicadeza era a do presidente da República do meu país. Fui. Docilmente.
À porta da sala de reuniões, ele para e me pergunta: que é que você está fazendo aquI? Por que ainda não procurou sua cadeira. Como assim?, pensei. Ele deve está me confundindo. Será que bebeu, se drogou. Obedeci. Arrumei uma cadeira bem atrás do meu chefe que acompanhava a cena sem entender o diálogo dos personagens.
Informes foram dados, sugestões, ranger de dentes, comandantes militares vociferavam pedindo mais recursos, parecia que iam sair aos tapas. Eu, muda, assustada, quieta, com o coração numa montanha russa. Nada. Passa-se o tempo, falam, falam. Bem mais de duas horas, três e, depois, batem na mesa unanimente. A solução iluminara a sala. Acabavam de criar o Ministério Extraordinário para Articulação de Ações na Amazônia Legal. Um ministério com nome e sobrenome. Assim, sem qualquer pudor. Na minha frente. A reunião se dissolve. Os carros pretos rodam o caminho de volta.
PARA SEMPRE
O presidente, então, na maior gentiliza, como se minha opinião fosse decisiva, me perguntou: "E aí, gostou do resultado?”. Na sinceridade que salta de minha boca de forma descontrolada, antes mesmo de passar pelo esmerilho, respondi “não, não gostei. Não precisava de um Ministério da Amazônia. Precisa só usar a lei. Ela existe".
Estava corada, morta de vergonha, mas a observação já tinha ganhado corpo independente e falava quase sozinha. O presidente pegou os papéis um tanto amassados e disse “na próxima, você bate o pé, reclama". O que? Não houve próxima e, ainda em dúvidas sobre tudo o que acontecera naquela manhã, agradeci com a voz mais suave que pude encontrar dentro de mim. "Presidente Itamar, obrigada. Foi uma aula". E ele, “Claro você nos inspirou".
E já não era o presidente Itamar Cautiero Franco. Era o sempre galante cidadão Itamar Franco usando não mais uma atribuição constitucional e sim seu mais conhecido atributo, a galanteria. Sempre educada e sedutora.
Adeus, Presidente! Obrigada, presidente Itamar. Foi uma aula