sexta-feira, 3 de maio de 2013

A propósito de chuvas temporãs e chuvas serôdias


Por Clara Favilla

Dizem que usamos no máximo 200 palavras pra expressar o que queremos no dia-a-dia. Estamos acostumados a um vocabulário pobre e recorrente. Um  linguajar arroz  com feijão, de tão básico. Como feijão parece que também está saindo de moda,  melhor chamar esse linguajar de  arroz com arroz. E daqueles sem sal, sem salsa ou qualquer especiaria. 

Jornais e revistas, noticiário televisivos, filmes até os de trama mais complexas, sem falar nas peça publicitárias, contribuem para essa nossa pobreza na comunicação oral e até escrita.  Afinal , tudo precisa ser dito o mais rápido possível e com palavras que todo mundo entenda. 

A opção pelo óbvio reduziu muito o que entendíamos por clareza na exposição de ideias. Raro alguém garimpar aquela palavra sonora, bendita, na elaboração de textos de leitura diária e obrigatória. De vez em quando, tropeçamos em cacos, estilhaços dos filões de belezas soterradas. Alguém grita: Eureka! E navegamos pela Grécia Antiga, nas ondas ancestrais da filosofia. È bem verdade que alguns engraçadinhos, envergonhados de tal conhecimento gritam: Corega! Sim, muitas vezes nos nivelamos por baixo para fazer parte do bando. 

Enquanto eu crescia,  gostava de ouvir os antigos da família. Eles não estavam contaminado pelo vocabulário da hora. Uma das minhas avós dizia a palavra alhures com a maior naturalidade. Outra, soltava, aqui e acolá,  um sonoro quiçá. Nenhuma falava lanche, nem lancheira. Mas merenda e merendeira. Rico era nababo. E advogado, rábula. Uma das minha avós falava portuliano como a maioria das avós da minha cidade. Achava simplesmente, quando criança, que elas eram apenas senhoras de um jeito muito próprio de se fazer entender pelos respectivos clãs. 

Avós também escreviam com grafia de outras épocas: ella, pharmácia, cousa.  Já faz algum tempo que o falar e o escrever andam perdendo a identidade geracional. Avós, filhos, netos  e bisnetos falam as mesmas gírias e abreviam palavras ao escrevê-las. As vogais estão desaparecendo. Vejam:  pq, qd.  Beijo no singular é bj. No plural, bjs.  O abraço quase desaparece num mesquinho ab. No plural, abs. 

Algumas consoantes também desaparecem quando escrevemos. A verdade empobreceu e é  apenas vdd. E não culpem o Twitter. Essa redução já vem acontecendo faz tempo. Além disso, qual a parcela da população  é tuiteira? Essas reduções de grafia podem ser comprovadas em bilhetes, cartas manuscritas e em e-mails de gente que nunca tuíta, que nunca manda mensagens de textos via celulares.  Digamos assim, é uma tendência. Textos inteiros começarão a sair  assim com palavras sem vogais e com um mínimo de consoantes.  Quem viver verá. 

Uma boa oportunidade de se ouvir palavras mágicas, plenas de significado é frequentar igrejas. Nas católicas tem as leituras  de passagens bíblicas e a do  Evangelho do dia. Pena que ao comentá-lo o padre de plantão recorra ao vocabulário mais rasteiro. Padres e pastores demolem qualquer vestígios de beleza em seus sermões ao comentar epístolas,  salmos, parábolas. Os Evangelistas certamente tornaram-se cegos e surdos nas Alturas. Mesmo iluminadas em vida pelo Espírito Santo e transformados em plena luz depois da morte, não encontrariam palavras que traduzissem a ira terrível e santa pelo que fizeram  de suas palavras com o passar dos séculos. 

Bem, tudo o que escrevi tem a ver com post aqui neste blog  com o título Sobre indignações cínicas e Serôdias, do amigo Aetano. Confesso que precisei recorrer ao dicionário.  Serôdio do latim serotinus - que age tarde, tardio. Adjetivo. 1. Que vem no fim da estação própria. 2. Que aparece ou acontece fora do tempo considerado próprio. 3. (Figurado) Que já se sabe há muito tempo, equivalente a antigo, velho. 

Não sei se a formação em Direito de Aetano é a causa dele nos brindar com tais pérolas. Pode ser o tipo de leituras que faz. Só sei que fico feliz quando preciso recorrer ao dicionário. Nem tudo está perdido. Há ainda pessoas neste mundo, dessas perto de nós,  que não se contentam com o linguajar da hora. Que usam natural e devidamente palavras cheias de conteúdo, ainda não desgastadas. Palavras  que reluzem feito jóias raras quando resgatadas da obscuridade ou de nichos nem sempre acessados. E nos fazem lembrar de chuvas temporãs e chuvas serôdias e o conteúdo místico que as envolvem desde o cerne. 





13 comentários:

  1. Beleza de texto! As vezes me sinto como seus avós! Abraços e nunca (Abs) porque o que quero te dar é um bem apertado e nunca um tipo de freio de automóvel! Chicoreinaldo

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    1. Adorei o comentário.E um abraço apertado pra você também.
      Clara

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  2. Como disse ao partilhá-lo no face, às vezes somente um bom texto para salvar uma madrugada insone. E como são bons os textos por aqui, não? Abraços!!

    Paula

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  3. Belo texto, Clara.
    Confesso que uso abreviaturas no Twitter e "bjs" em e-mails para amigos.
    Nada contra a língua culta, ao contrário, mas sinceramente acho muito bom avós e pais conversarem com os netos e filhos usando a linguagem deles, pois pode não parecer, mas os aproxima. Como tudo, a língua também sofre mutações.
    Quando escrevo procuro usar uma linguagem bem simples e que possa ser entendida por todos.Creio que em jornal, blogs e revistas não se deve complicar muito, pois os textos são para todo tipo de leitor.
    Quando menina eu merendava, hoje lancho com meu neto. Acho melhor assim.
    A língua culta temos em belos livros que nos dão um prazer enorme.
    Beijos.

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  4. Linguajar arroz com arroz...muito bom.
    Maria de Lourdes.

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  5. Ontem, no TT, vi que havia um novo e bom texto aqui. Parabéns.

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  6. Ótimo. Vou tentar melhorar meu vocabulário.

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  7. Obrigado a todos pelos comentários e continuem prestigiando
    o Café & Veneno.
    Abraços
    Clara

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  8. Adorei. Gosto muito de ler o que você escreve.

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  9. Acabei de ver o link no Twitter. Gostei demais.
    Mauricia

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  10. Viva o Café & Veneno, voltou!
    Carmem Lúcia

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  11. Concordo com isso: "A opção pelo óbvio reduziu muito o que entendíamos por clareza na exposição de ideia".
    Monica Maria de Souza

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