segunda-feira, 29 de julho de 2013

Bate-papo com o cineasta Sérgio Moriconi, no Sebinho


Seminário Arte em Brasília
No balanço dos 50 anos

      A livraria Sebinho promove bate-papo com Sérgio Moriconi, autor do livro Cinema – Apontamentos para uma história.

Discutir mensalmente um tema sobre a cultura em Brasília. Este é o principal objetivo doSeminário Arte Brasília que o Sebinho realiza, em parceria com o ITS – Instituto Terceiro Setor e com o apoio da Pau-Brasília viveiro ecoloja, desde abril. Os seminários acontecem mensalmente, no Sebinho (406 Norte), das 19h às 21h, com entrada franca e mediação do poeta Nicolas Behr. O próximo tema será o CINEMA, no dia 29 de julho, segunda-feira. E traz Sérgio Moriconi, jornalista, sociólogo, cineasta, professor, crítico de cinema e autor do livro Cinema – Apontamentos para uma históriaeditado pelo Instituto Terceiro Setor, para conversa sobre a história do cinema na Capital Federal, juntamente com um personagem do livro. Os primeiros quarenta inscritos recebem o livro gratuitamente.  O debate será seguido de sessão de autógrafos.
Livro: Cinema – Apontamentos para uma história Pontos de venda: Livraria Dom Quixote (CCBB) ; Livraria Sebinho (406 Norte) e ITS – Instituto Terceiro Setor (SCRN 706/7, Bloco D, Entrada 12 Sala 301 – Ed. Fearab)
Preço médio: R$ 50.

Seminário Arte Brasília – No balanço dos 50 anos Local: Livraria Sebinho (406 Norte).
Data: Segunda-feira (29/07), das 19h às 21h.
Entrada franca
Classificação indicativa livre.

Mais informações pelos telefones:
Telefone: (61) 3447-4444 ou pelo site  www.sebinho.com.br

domingo, 30 de junho de 2013

MENINOS, EU VI

*Eduardo Balduino 
Eu vi, por exemplo, Brasília nascer. Em Goiânia, vi o horror da Ditadura pelos meus olhos ainda de uma criança que não entendia porque o pai, tio, tia, eram presos. Aliás, em Goiânia, foi a primeira vez que vi as pessoas na rua defendendo sua convicção, confrontando caças e tanques em defesa de seu governador. E foi lá, anos depois, que vi o primeiro comício pelas Diretas Já.

Eu vi, em Brasília, a força do sentimento de gratidão quando o povo levou o caixão de JK nos ombros e fez a força militar ainda da Ditadura recuar.

Antes, eu vi, ainda em Goiânia, dois fenômenos que, hoje, poderiam ser criticados pelo viés da estética, mas que mudaram o mundo. Vi, em 68, os jovens parisienses e, em 69, os jovens de Woodstock.

Nossa! Vi, também em Goiânia, Geraldo Vandré cantando, pela última vez no Brasil, “Prá não dizer que falei de flores”. Na verdade, ele não cantou. Fez um show fantástico, para 3 mil pessoas no Cine Teatro Goiânia. No final, sob os pedidos para cantar o hino da resistência à revolução, começou a dizer que estava proibido de cantá-lo, enquanto, no fundo, a banda tocava - e cantamos nós todos a música, guardados por soldados que preenchiam os corredores do teatro. De lá, Vandré foi para o Chile, naquela mesma noite.

Vi, e compreendi, a força da arte nas revoluções. Como nesse show que aconteceu em Brasília, no último dia 29 de junho, em homenagem a Renato Russo.




Vi, nas redes sociais, muita gente criticando o espetáculo, porque um ou outro errou a letra, ou porque Jerry Adriani – que pouca gente hoje sabe quem é – estava lá. Como tentaram ridicularizar Ivete Sangalo chorar sentada no chão do palco.
Respondi, para uma jornalista: vocês estão vendo o show, e eu, o fenômeno.
Meninos, estou vendo agora um movimento de ruptura cultural acontecendo no país e tem gente preocupado com o desafinar de um cantor.
Talvez não tenham notado, no telão de fundo de palco, a bandeira do Brasil tremulando seguidas vezes. Nem percebido o mestre de cerimônias do show pedir – e conseguir – um minuto de silêncio pelos mortos nas manifestações que se multiplicam no país há alguns dias – e que estão mudando o país.



 
Pois, o que eu vi no show transmitido ao vivo de Brasília foi a irreversibilidade desse movimento, que começou com uma reivindicação de tarifas de ônibus mais baratas, e se transformou na mola propulsora de mudança de um ciclo. 
A ponto de os que o iniciaram também não entenderem a sua extensão e se renderem ao seu próprio alvo.A ruptura se dá quando é transformada em sentimento uno. No tributo a Renato Russo, eu vi isso.
Não são os vinte centavos da passagem de ônibus. Não são os estádios erguidos para a Copa.
É o sentimento de mudança que se cristalizou no país.

E, por ele, estamos todos cantando juntos, desafinados, ou não. Mas, todos no mesmo tom: o da mudança. 

*Jornalista

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Anjos não tem idade, anjos são eternos


Dizem que muitos nomes contem o destino das pessoas.
Não é para todo mundo que Deus diz: Vá ser Anjo na vida.
E  mesmo que Deus diga, não são todos os que obedecem a sina de proteger, guardar e se esquecer pelos outros.
Mas há os que levam essa sina a sério e vivem uma vida longa para melhor iluminar o caminho de uma família tão grande como a nossa.



Todos dessa imensa família  Pellicano  somos um pouco irmãos e filhos de Ângelo. 
Todos aqui provaram de sua comida e não se esquecem de seu arroz com chuchu. Da bacalhoada sempre aumentada com pão amanhecido. Nem de sua torta de banana e muito menos de um especial doce de gomos de limões galegos, colhidos no quintal. Ele sempre fez o milagre de esticar o que tinha na dispensa para que ninguém passasse fome. E nunca lhe faltou dinheirinho pra arriscar no jogo do bicho.





Quando a mãe, Venerina,  ficou viúva aos 35 anos, com nove filhos, ele foi precocemente arrimo de família. Cuidou dos irmãos mais novos. Aprendeu a cozinhar, costurar, fazer crochê. Quando jovem, tinha uma legião de amigos. Adorava dançar, pular carnaval, e dizem que também de tomar uns porres de lança-perfume. Não era proibido.

Foi o mais amado dos irmãos, das  irmãs, cunhados, cunhadas. Cuidou dos sobrinhos e sobrinhas  como filhos antes e depois de ter sua própria família com uma das mais lindas  moças de Ouro Fino. Ela também carregou no nome o destino de ser Cirineia e Santa. Cirineia Santa Rigotto.  

Vocês sabem, Cirineu foi aquele bom homem que ajudou Jesus a carregar a cruz até o calvário. Não foi por acaso que uma Cirineia aconteceu na vida de um Anjo. Deus sabia que a tarefa dada a Ângelo Pelicano seria plena de luz, de muitas alegrias, muitos fortes acontecimentos, mas também de muitas perdas e dificuldades. Nunca seria fácil. 

Então, abençoada a família que tem como exemplos, como guias um Anjo e uma Santa. Eles teceram juntos belezas pelos caminhos que trilharam na forma de casas sempre arrumadas e acolhedoras, vestidos de festas, enxovais, ternos,  casacos de frio, peças de crochês e bordados, bolos de casamento e de aniversário. Cuidaram juntos com desvelo de parentes doentes. E há sobrinhos aqui que estão vivos porque, quando desenganados pelos médicos, Ângelo não esmoreceu. Passou a noite velando por eles, quando as mães já não aguentavam de exaustas. 

Celebramos no dia 23 de maio a vida de Ângelo Pelicano, filho, irmão, marido, pai, sogro, tio,padrinho, avô e bisavô; do Ângelo Pelicano amigo querido de tanta gente de Ouro Fino e aqui de Brasília. Dizem que ele completou 90 anos. Mas vocês sabem que Anjo não tem idade. Anjos são eternos. Amém 

sexta-feira, 3 de maio de 2013

A propósito de chuvas temporãs e chuvas serôdias


Por Clara Favilla

Dizem que usamos no máximo 200 palavras pra expressar o que queremos no dia-a-dia. Estamos acostumados a um vocabulário pobre e recorrente. Um  linguajar arroz  com feijão, de tão básico. Como feijão parece que também está saindo de moda,  melhor chamar esse linguajar de  arroz com arroz. E daqueles sem sal, sem salsa ou qualquer especiaria. 

Jornais e revistas, noticiário televisivos, filmes até os de trama mais complexas, sem falar nas peça publicitárias, contribuem para essa nossa pobreza na comunicação oral e até escrita.  Afinal , tudo precisa ser dito o mais rápido possível e com palavras que todo mundo entenda. 

A opção pelo óbvio reduziu muito o que entendíamos por clareza na exposição de ideias. Raro alguém garimpar aquela palavra sonora, bendita, na elaboração de textos de leitura diária e obrigatória. De vez em quando, tropeçamos em cacos, estilhaços dos filões de belezas soterradas. Alguém grita: Eureka! E navegamos pela Grécia Antiga, nas ondas ancestrais da filosofia. È bem verdade que alguns engraçadinhos, envergonhados de tal conhecimento gritam: Corega! Sim, muitas vezes nos nivelamos por baixo para fazer parte do bando. 

Enquanto eu crescia,  gostava de ouvir os antigos da família. Eles não estavam contaminado pelo vocabulário da hora. Uma das minhas avós dizia a palavra alhures com a maior naturalidade. Outra, soltava, aqui e acolá,  um sonoro quiçá. Nenhuma falava lanche, nem lancheira. Mas merenda e merendeira. Rico era nababo. E advogado, rábula. Uma das minha avós falava portuliano como a maioria das avós da minha cidade. Achava simplesmente, quando criança, que elas eram apenas senhoras de um jeito muito próprio de se fazer entender pelos respectivos clãs. 

Avós também escreviam com grafia de outras épocas: ella, pharmácia, cousa.  Já faz algum tempo que o falar e o escrever andam perdendo a identidade geracional. Avós, filhos, netos  e bisnetos falam as mesmas gírias e abreviam palavras ao escrevê-las. As vogais estão desaparecendo. Vejam:  pq, qd.  Beijo no singular é bj. No plural, bjs.  O abraço quase desaparece num mesquinho ab. No plural, abs. 

Algumas consoantes também desaparecem quando escrevemos. A verdade empobreceu e é  apenas vdd. E não culpem o Twitter. Essa redução já vem acontecendo faz tempo. Além disso, qual a parcela da população  é tuiteira? Essas reduções de grafia podem ser comprovadas em bilhetes, cartas manuscritas e em e-mails de gente que nunca tuíta, que nunca manda mensagens de textos via celulares.  Digamos assim, é uma tendência. Textos inteiros começarão a sair  assim com palavras sem vogais e com um mínimo de consoantes.  Quem viver verá. 

Uma boa oportunidade de se ouvir palavras mágicas, plenas de significado é frequentar igrejas. Nas católicas tem as leituras  de passagens bíblicas e a do  Evangelho do dia. Pena que ao comentá-lo o padre de plantão recorra ao vocabulário mais rasteiro. Padres e pastores demolem qualquer vestígios de beleza em seus sermões ao comentar epístolas,  salmos, parábolas. Os Evangelistas certamente tornaram-se cegos e surdos nas Alturas. Mesmo iluminadas em vida pelo Espírito Santo e transformados em plena luz depois da morte, não encontrariam palavras que traduzissem a ira terrível e santa pelo que fizeram  de suas palavras com o passar dos séculos. 

Bem, tudo o que escrevi tem a ver com post aqui neste blog  com o título Sobre indignações cínicas e Serôdias, do amigo Aetano. Confesso que precisei recorrer ao dicionário.  Serôdio do latim serotinus - que age tarde, tardio. Adjetivo. 1. Que vem no fim da estação própria. 2. Que aparece ou acontece fora do tempo considerado próprio. 3. (Figurado) Que já se sabe há muito tempo, equivalente a antigo, velho. 

Não sei se a formação em Direito de Aetano é a causa dele nos brindar com tais pérolas. Pode ser o tipo de leituras que faz. Só sei que fico feliz quando preciso recorrer ao dicionário. Nem tudo está perdido. Há ainda pessoas neste mundo, dessas perto de nós,  que não se contentam com o linguajar da hora. Que usam natural e devidamente palavras cheias de conteúdo, ainda não desgastadas. Palavras  que reluzem feito jóias raras quando resgatadas da obscuridade ou de nichos nem sempre acessados. E nos fazem lembrar de chuvas temporãs e chuvas serôdias e o conteúdo místico que as envolvem desde o cerne. 





domingo, 28 de abril de 2013

Crônica de uma noite de outono

Por Cris Lopes

Sou da noite, não da farra noturna, gosto do silêncio de casa. Pessoas dormindo, um ressonar aqui e ali, um bom livro e um copo d'água ao meu lado. Tem coisa melhor? É hora de pensar, organizar os pensamentos e depois dormir o sono dos justos. Tenho feito muito isso. É a hora da meditação, de encontrar o centro, o tão desejado equilíbrio.

Para outras coisas gosto do dia. Adoro sol, mas não me entendo bem com o calor, daí minha predileção pelo mês de maio, nem oito nem oitenta. Perfeito. Sinceramente, mesmo sabendo da necessidade, não gosto de chuva, mas quando ela cai depois de muitos dias desaparecida e vem aquele cheiro forte de terra molhada, eu amo. Amor fugaz.

É bom acordar em um dia fresquinho, abrir a janela, respirar profundamente e ver o mar, as montanhas e muitas gaivotas. Algumas vezes urubus se intrometem no meio delas e mesmo sendo um bicho horrível, voando é maravilhoso como se fosse garça. A vida é assim, plena de contrastes.

Penso em mim e dou um rápido passeio no passado. Percorro meu itinerário de vida, alterado várias vezes por mudanças intempestivas. Cai, levantei, cai de novo, encontrei o amor pleno da maternidade e que maravilha! Fui avó de um lindo menino loirinho com cara de anjo e que hoje é um adolescente saudável. Dádiva, só pode ser. Amei, fui amada, encontrei o amor que eu queria e digo com sinceridade, sou feliz. Não tenho mais desejos supérfluos, encontrei, no meio de dores e alegrias o que acho ser meu equilíbrio. Enlouqueci? Talvez, mas ganhei sabedoria, muito menos do que gostaria.

Como todos, também adoeci, curei-me, adoeci de novo e vou levando a vida sorrindo na certeza de que nada nos acontece por acaso. Fatalista? Quem sabe. Mulher de fé, sou. Fé em tudo: Deus, pessoas, natureza, mundo...sou daquelas que acredita que o meu país melhorou e nem gosto de me lembrar da palavra ditadura; é como se fosse um cancro cravado na alma, daqueles que médicos e remédios não curam.

Quando jovem era uma espoleta. Quanto mais coisas melhor. Foi divertido, mas passou. Amadureci, descobri a paz de estar em casa, a alegria d presença dos filhos, do neto, dos amigos, tudo assim calmo, um pouco de cada vez, pois sou inimiga do estresse que conheci tão bem. Depressão? Nunca mais ela me pega e só me pegou, juntamente com uma síndrome do pânico, porque eu estava desprevenida e pensando que o trabalho era a coisa mais importante do mundo. Passei um tempão sem parar para ver os pássaros, aprender a tirar uma abelha da casa sem machucá-la e muito menos matar, coisa simples que não ia e resolvia logo com uma chinelada sem pensar na importância do animalzinho.
Estou longe da perfeição, e o pavor de baratas adquirido na casa de uma de minhas avós? esse irá comigo até a eternidade, mas como tenho sorte, nunca vi uma em minha casa e nem escutei o som bem baixinho (tsc, tsc) que elas fazem quando correm ou se preparam par o voo.

Pois então, mais uma das minhas estórias em uma noite de outono. Fica o registro.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

No meio do caminho desta vida, me vi perdido numa selva escura

Nesta sexta-feira, 26, realmente me surpreendi.
Logo depois da abertura  , simplesmente genial, da série Mad Men , no primeiro episódio da sexta temporada, me aparece Don Draper em férias com a nova namorada, numa praia do Havaí, com Divina Comédia, de  Dante Alighieri , em mãos.

É claro, lia o  Canto I, um dos mais conhecidos.  Versos que definem a temporada que traz Don, na encruzilhada da meia idade, repensando o já vivido e principalmente seus erros.
Há uma infinidade de traduções para a Divina Comédia, principalmente deste Canto I, mas optei por transcrever aqui a de Augusto Campos: 


O Paraíso , Ilustração de Sandro Botticelli para a Divina Comédia 

"No meio do caminho desta vida
me vi perdido numa selva escura,
solitário, sem sol e sem saída
Ah, como armar no ar uma figura
dessa selva selvagem, dura, forte,
que, só de eu a pensar, me desfigura?
É quase tão amargo como a morte;
mas para expor o bem que eu encontrei,
outros dados darei da minha sorte.
Não me recordo ao certo como entrei,
tomado de uma sonolência estranha,
quando a vera vereda abandonei.
Sei que cheguei ao pé de uma montanha,
lá onde aquele vale se extinguia,
que me deixara em solidão tamanha,
e vi que o ombro do monte aparecia
vestido já dos raios do planeta
que a toda gente pela estrada guia
Então a angústia se calou, secreta,
lá no lago do peito onde imergira
a noite que tomou minha alma inquieta;
e como o náufrago, depois que aspira
o ar, abraçado à areia, redivivo,
vira-se ao mar e longamente mira,
o meu ânimo, ainda fugitivo,
voltou a contemplar aquele espaço
que nunca ultrapassou um homem vivo."

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Felicidade Clandestina


Clarice Lispector 

Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos, meio arruivados. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse, enchia os dois bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria.

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era da paisagem do Recife mesmo, onde morávamos , com suas pontes mais do que vistas. Atrás escrevia com letra bordadíssima palavras como "data natalícia" e "saudade".


Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia.

Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía «As reinações de Narizinho», de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima das minhas posses. 

Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até ao dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar num mar suave, as ondas me levavam e me traziam.

No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. Boquiaberta, saí devagar, mas em breve a esperança de novo me tomava toda e eu recomeçava na rua a andar pulando, que era o meu modo estranho de andar pelas ruas do Recife. Dessa vez nem caí: guiava-me a promessa do livro, o dia seguinte viria, os dias seguintes seriam mais tarde a minha vida inteira, o amor pelo mundo me esperava, andei pulando pelas ruas como sempre e não caí nenhuma vez.

Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder; que eu voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o drama "dia seguinte" com ela ia se repetir no meu coração batendo.

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo de seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas, adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra.

Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você só veio de manhã, de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados.

Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o facto de não estar entendendo.Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler!

E o pior para essa mulher não era essa descoberta do que acontecia. Devia ser a descoberta horrorizada da filha que tinha. Ela nos espiava em silêncio: a potência de perversidade de sua filha desconhecida e a menina loura em pé à porta, exausta, ao vento das ruas de Recife. Foi então que, finalmente se refazendo, disse firme e calma para a filha: você vai emprestar o livro agora mesmo. E para mim: "E você fica com o livro por quanto tempo quiser." Entendem? Valia mais do que me dar o livro: "pelo tempo que eu quisesse" é tudo o que uma pessoa, grande ou pequena, pode ter a ousadia de querer.

Como contar o que se seguiu? Eu estava estonteada, e assim recebi o livro na mão. Acho que não disse nada. Peguei o livro. Não, não saí pulando como sempre. Saí andando bem devagar. Sei que segurava o livro grosso com as duas mãos, comprimindo-o contra o peito. Quanto tempo levei até chegar a casa, também pouco importa. Meu peito estava quente, meu coração pensativo.

Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardava o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre iria ser clandestina para mim. Parece que eu já pressentia. Como demorei! Eu vivia no ar...Havia orgulho e pudor em mim. Eu era uma rainha delicada.

Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.
Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante.

Texto postado no Facebook por Ana Sofia Melo