Cleusinha tá nem aí para a sucessão papal. Nem acha nem desacha se o Sumo Pontífice (gosta de se referir a ele assim) deveria ter renunciado ou não. Cada um sabe de si é seu ditado preferido. Não julga e não quer ser julgada. Não digo que tem a inocência das crianças como se costuma dizer, mas tem uma delicadeza desconcertante até quando fala alto ou gargalha.
As amigas dizem que ela precisa dar um trato no cabelo, mas ela gosta deles assim, sempre em briga com o vento, com a chuva, com o tempo seco de Brasília, com o travesseiro. Cleusinha começou três faculdades e abandonou todas: por falta de paciência, de dinheiro ou tédio. Nem tem 30 anos. Aos 25 já havia largado e sido largada pelo marido. Diz que graças a Deus ainda não teve filho. Graças a Deus e à sorte porque pelo jeito que fala nem sei se teve ou tem os cuidados que lhe garantam nenhum bebê à vista agarrado-lhe às pernas.
Gárgula, Notre Dame - Foto de Michael Reeve , Wikipédia Commons |
Diz que tem saudades do ex-marido, mas não de ter sido casada. Ele queria refiná-la: que rebolasse menos quando dançasse, que falasse menos, risse menos quando estivesse entre homens. Fosse menos debochada, insolente. Quando toca no assunto, não demora a se exasperar. Começa falando baixo, mas de repente puxa e repuxa nervosa as pontas dos cabelo, olha pro teto até que explode num: "Porra, não sei o que ele queria de mim. Se me queria de outro jeito porque se casou comigo?"
De tanto o marido querer reformá-la, ajustá-la ao próprio figurino e o da família, Cleusinha começou também a construir implicâncias contra ele por isso e por aquilo. Precisa levantar tão cedo, tomar banho de mais de meia hora, querer tanto café e sempre passado de novo quando está em casa? E pra que tantos livros, revistas e jornais?
O marido inventou férias em Paris e Roma. Trouxe-lhe guias e dicas de amigos para ela saber onde estava pisando e ele não ter que ficar lhe explicando tudo o tempo todo. Ela não leu nenhum e fingiu de morta quando ele lhe repassava irritado alguma malditas pendantes dicas. Mas foi ela que teve paciência de ficar na Notre Dame até que os olhos se acostumassem com a falta de claridade. Até que alma voasse por cima das centenas de cabeças de turistas e alcançasse as cores dos vitrais mais altos. Foi ela que subiu centenas de degraus para ver o que poderia ver lá de cima e ficou sabendo tudo sobre gárgulas e o passado escondido sobre a base da catedral.
Cleusinha é sortuda. Gosta, como eu já disse, de aprender de ouvido, desde que possa decidir quando e sobre o que prestar atenção. Não é que encontrou lá em cima um casal brasileiro muito simpático que lhe explicou tudinho o que queria e o que nem queria saber? E ainda lhe convidou pra almoçar, o que ela polidamente recusou porque, embora não pareça, é bem tímida. Depois de um passeio pelas jardins da catedral sem entender porque ela é muito mais bonita de costas que de frente, procurou e não encontrou o marido que havia visto pela última vez... quando mesmo?
Entraram, sim, juntos na catedral e ele, logo em seguida, irritado por alguma coisa que ela nem captou direito, distanciou-se dela até desaparecer na penumbra. Ela achou que se andasse pra frente, se fosse até o altar, se subisse as escadas até o campanário, acabaria por encontrá-lo. Não só não o encontrou, como até se esqueceu dele alguns minutos depois. Havia entrado naquele estado, velho conhecido seu, de maravilhamento total.
Ao chegar bem perto da Madona de Paris fez os três pedidos de praxe, quando se entra pela primeira vez em uma igreja. No caso dela, é sempre um que repete três vezes: saúde, saúde e saúde. Agora estava ali, sozinha, sem saber pra onde ir. Fechou os olhos para pensar um pouco antes de decidir e ao abri-los lá estava o casal fofinho recém conhecido, de bobeira, conferindo a paisagem refletida no Sena. Como recusar de novo o convite para almoçar? O marido certamente não se deu ao trabalho de procurá-la por muito tempo. Sempre optava pelo óbvio, pelo mais fácil. Já deveria estar no hotel. Então, que a esperasse.