por Memélia Moreira
Nas minhas muitas inquietudes que se traduziram em viagens, fui a um país que me fascinava e pelo qual sentia repulsa. O deserto de Kalahari, a altivez do povo Zulu, o repugnante apartheid que marcou a história do país, Nélson Mandela, Dom Desmond Tutu, o escritor J.M. Coetzee, a África do Sul sempre frequentou meu mapa aventureiro. E foi assim que em 2000 embarquei para aquele país, onde a África flerta com a Austrália, a duas esquinas do fim do mundo.
Cruzei o deserto de Kalahari, porque os desertos me magnetizam, estive em Joanesburgo, Durban, Pretória, Cidade do Cabo, mas não ouvia ninguém me indicando uma visita ao Soweto, a favela da resistência negra que se transformou em cidade, ao lado de Joanesburgo. Mas foi lá que vivi uma das grandes emoções de minha vida.
Não havia hotel em Soweto. Nem brancos. Fui de táxi. O motorista, um ex-piloto chamado Isak, não gostou quando lhe disse que voltasse no dia seguinte para me buscar. É que decidi dormir em Soweto. Ele fez careta garantindo que o lugar era perigoso para negros e não negros. Ignorei o conselho e rodei a favela, até encontrar a "Casa di Stella", um bar-restaurante, onde à noite negros se reuniam para tocar jazz e que foi também minha pousada na noite de 9 de março de 2000.
Stella, a proprietária, me recebeu como se me conhecesse e quando lhe disse que queria dormir na favela, não se alterou e me levou a um cubículo com esteiras de palha nova e disse que eu podia dormir ali, "sem medo". Perguntou se eu ia almoçar e me deu um guia para visitar a favela.
Estive na casa onde Mandela viveu antes de passar 27 anos na cadeia. Toda perfurada de balas, chão batido, a casa era só o prenúncio do que me esperava. Caminhei pelas ruas e, vi uma escola quando, de repente, percebi um Memorial. Eu estava exatamente no lugar onde acontecera o "Massacre de Soweto".
Meu corpo sacudiu e chorei. Era hora da saída da escola. As crianças, pulando e rindo, vinham em debandada. Foi aí que tive a exata noção do que aconteceu no dia 16 de junho de 1976. Estudantes faziam um protesto pacífico por melhores condições de ensino e foram massacrados. A polícia descarregou suas balas usou bomba de gás lacrimogêneo e testou bomba de petróleo. Quatro estudantes foram mortos. Um deles, Hector Pierson, tinha 13 anos. Conhecia a história porque o noticiário correu o mundo e vi pela televisão no momento em que amamentava Cristina, minha filha mais velha. Naquele março de 2000 chorei tanto ou mais do que em junho de 1976 porque pensei em outros massacres onde mataram crianças. E escrevi o "poema" que se segue.
Antes de mais nada, peço desculpas porque não sei se é exatamente um poema. vamos chamá-lo apenas de "poético".
Ruas de lata,
homens de luta.
Terra cinzenta de um povo
da cor da noite
Soweto, Soweto.
Sou gueto.
O mesmo sorriso fácil das crianças
do Jardin de Luxembourg', Hyde Park, Manhhatan,
Diauarum, Mekness, Lago Sul.
O mesmo alarido infantil
nos uniformes em azul e branco na saída da escola.
Mas conheceram o sangue,
antes de conhecerem a vida.
Too young to die, e mesmo assim
se foram naquele inverno de 76.
Pobre menino negro e seu olhar perplexo,
carregando um corpo igual na cor, nos sonhos, na sina.
Meu corpo estremeceu no teu Memorial e
as bombas de petróleo ecoavam em todos os meus sentidos.
Soweto, MyLai, Puerto Cabezas, Haximu, Rocinha, Kosovo, Sabra, Chatila, Treblinka
Minhas crianças que jamais crescerão.
Por que plantaram tantos hectares de ódios? Por que?
Soweto do langor mississipiano, do sax de liberdades.
Soweto livre no batuque da rua, reconstruindo a desconstrução.
Soweto desafio da pátria resistente,
te entrego aqui lágrimas e minhas mãos para dançarmos a ciranda
das emoções, nesta aldeia universal. Soweto, meu povo, meu amor.
Em 09/03/2000