Quando algo pega a gente pra valer, sempre dá um jeito de retornar com frescor, independente dos variados espaços entre as ondas de memória que o leva ou traz. A geografia de episódios assim indica que esse território se chama emoção. O material, por maior prazer que o sustente no momento da posse, está longe do atestado de vida longa. Pertence ao espaço do efêmero. O espanto da emoção, ao contrário, se eterniza. E se eternizou em mim o primeiro close da atriz norueguesa
Liv Ullmann que eu vi dentro da sala escura. O título do filme voou, restou apenas o olhar. Nos outros filmes dela que persegui, queria apenas ver novamente como dois olhos estáticos conseguiam tanta eloquência, como podiam dizer tanta coisa, como explicavam sentimentos em plena mudez, como exibiam a sensibilidade extraordinária dela.
E um belo dia, provavelmente da década de 1980, encontrei por acaso um livro - Mutações - que me despertou enorme curiosidade por se tratar da autobiografia de Liv. E que se tornou meu amigo e guardo até hoje. Logo eu, que dou meus livros aos montes. Ali, ela contou o mistério do close: vinha de pensamentos atrás da testa, muitas vezes encadeados, como dúvidas, covardia, ambivalência, falta de nobreza espontânea requeridas pela personagem. Ou ainda a revelação do tipo de vida que seu rosto observou. Tudo muito interior, abstrato como a matemática, e distante da maquiagem, do cabelo, da beleza.
As histórias de Liv são contadas com uma delicadeza nórdica, quase política. Abre ao leitor uma série de contradições, como se sentir forte e frágil simultaneamente, como gostar de ser paparicada em Hollywood mas desejar correr sempre para Oslo, como perceber-se às vezes mais solitária na companhia de um homem do que sozinha. Relata o temor da velhice para quem conheceu muito bem os holofotes, a necessidade e as armadilhas do amor, as dificuldades de ser mulher nos anos 70, o mal -estar de não poder estar mais perto da filha Linn, seu amor maior.
Muitas páginas são dedicadas a Ingmar Bergman, o diretor sueco com quem se casou e teve a filha. Isolados na Ilha de Faro, entre a Rússia e a Suécia, que ele amava muito mais do que ela, viveram durante cinco anos fases tão pesadas que mais pareciam os filmes dele, dez dos quais a elevaram à categoria de grande estrela. Liv resume a vida com Bergman dialeticamente: "A única maneira de me sentir segura era viver do modo que ele queria. Pois só assim ele estava seguro".
Lendo Mutações me senti irmã de Liv. Nenhum sentimento dela me era estranho. Atitudes que tomou eu teria tomado também. Sua visão de mundo me soou familiar. Suas dúvidas me chegaram plausíveis como também suas dores e seus medos. E olha que não conheço fiordes, não me casei com um gênio sueco, não fiz teatro ou cinema, não acompanhei Henry Kissinger num evento, não jantei com Leonid Brezhnev e Richard Nixon na embaixada russa em Washington, não fui disputada por Hollywood, e nunca esqueci um alfinete no vestido e só percebi no meio da festa.
Com ela, passei também por uma mutação: perdi a crença na superioridade do macho branco europeu. Afinal, se Liv e eu éramos tão próximas, a ideia não se sustentava. E passei a olhar de banda os adoradores do Primeiro Mundo, hoje em processo de queda, que mal conseguem esconder o sentimento pessoal de inferioridade. Jamais conseguirei apreciá-los.